No fim dos anos 80, os jovens descobriram uma nova febre em Angola: Pedreira! Consistia
em viajar (da forma que fosse possível) para a Europa para se candidatarem a
uma obra de construção de edifícios, nessa altura, alguns países estavam a
entrar na Comunidade Económica Europeia e podia-se ver muitas construções
pedindo por jovens africanos desejosos de ganhar algum dinheiro enquanto
reconstruíam a sua vida almejando ajudar os seus familiares em África.
Na altura a forma das viagens
era do normal ao bizarro. Ouvimos falar de pessoas que haviam fugido
no porão de navios, viajado na parte da carga nos aviões, e até mesmo uns
sortudos que haviam conseguido fugir nos aviões que vinham de Portugal para
salvar os cidadãos portugueses – por altura dos confrontos que
se abateram sobre angola após as eleições. Os olhos de todos os jovens estavam
sobre quaisquer meios que os pudessem levar para fora de Angola.
Eu era um desses rapazes.
Depois de uma viagem ao Brasil em 1990, a Europa era o passo seguinte. Alguns
factores me colocavam entre as pessoas com maiores possibilidades para
conseguir emigrar: meus três irmãos mais velhos tinham nacionalidade europeia e
poderiam resolver a minha situação enviando uma carta de chamada para o visto de entrada num dos países europeus. Além disso, um tio meu
bastante abastado, que pertencia ao exército poderia ajudar-me a pagar as
passagens – na verdade ele já tinha feito coisa do género no passado e não lhe
custaria muito ajudar-me nisso que passei a acreditar que era o projecto da
minha vida. Apesar disso, eu tinha um ponto contra mim: eu sofria de epilepsia.
Nos anos 90 esta doença estava
ligada a forças espirituais e um grande misticismo a cercavam. O
desconhecimento da doença, aliado aos momentos de inconsciência que seguiam a
crise, faziam com que eu tivesse de me esconder um pouco – a epilepsia
impediu-me de cumprir o serviço militar – mas também era a barreira que impedia
o meu sonho de se realizar. Enquanto eu chorava por uma carta de chamada, os
meus irmãos faziam os possíveis para que eu não conseguisse viajar. Segundo
eles, eu corria o risco de sofrer uma crise no topo de uma das construções e
morrer.
Entretanto eu me voltei ao
Senhor – e passei a orar pela minha cura e também pela minha viagem – mas,
infelizmente aos poucos, o entusiasmo foi diminuindo e crescendo em mim uma
certa decepção, pois, segundo eu, como poderia haver um Deus amoroso se, por um
lado não me curava, e, por outro, não me deixava viajar? Afinal de contas tudo
o que eu queria era apenas ir para a Europa em busca de melhores condições de
vida! Como Deus poderia ser bom se não me permitia viajar em busca de uma vida
melhor?
Comecei a frequentar lugares em
busca de orações. Achava que pessoas mais chegadas a Deus seriam capazes de
falar de uma forma que Ele ouvisse e assim me curaria rapidamente. Ainda havia
a questão de orar pela viagem. Deus poderia ouvir mais outras pessoas – mais
antigas do que eu na fé – e assim, dar um jeito na minha situação. Nada!
Certo dia, os meus irmãos
decidiram abrir o jogo e acabei percebendo que não poderia mais viajar, pelo
menos, não se dependesse deles. O medo deles era legitimo e eu não tinha como
lutar contra isso. Os meus amigos que haviam viajado para a Europa, prometendo
que me me fariam subir mal começassem a trabalhar, esqueceram-se das promessas
ou, quem sabe, nunca conseguiriam conciliar as suas promessas com a sua
planificação dos seus gastos diários.
Com a porta fechada, e sem
saída, corri para a igreja em busca de alguém que me desse uma palavra de
conforto. Mesmo em meio a dor, sempre pode haver alguém que nos pode dizer
aquelas palavras que afastam dos olhos a névoa causada pelas lágrimas e nos
fazem ver novamente o caminho lá a frente. Tudo o que conseguia ver eram portas
fechadas: não tinha estudado mais, pensando que a minha viagem estava logo alí,
na esquina. Não tinha arranjado emprego, para quê isso? Não seria isso um sinal
de pouca fé, criar raízes no vaso enquanto se pensa em crescer num vasto campo?
Então, com as portas fechadas
e os irmãos todos ocupados, naquele momento de dificuldade emocional e
espiritual decidi orar pedindo uma palavra especial a Deus. Abri aleatoriamente
a Bíblia pensando que onde quer que abrisse seria a palavra de consolo ou o
encorajamento que vinha directamente de Deus para mim. Respirei fundo, me
certifiquei que Deus sabia do assunto e abri. Estava na página entre os
capítulos 35 a 37 do livro Profeta Ezequiel. Optei pelo capítulo 37 porque é o
capítulo onde tinha os dedos. Era o relato da visão no vale dos ossos secos.
Quando terminei a leitura
estava mais animado, Deus havia me mostrado que era poderoso para fazer o que
quer que fosse. Já não achava mais que Ele estava distante – ou que não se
importasse o suficiente para intervir na minha vida – passei a achar que Ele,
sendo tão poderoso, poderia ter outros planos para a minha vida. Pela primeira
vez na vida, achei que a minha vida tinha algum valor para Deus.
Chegando a casa comecei a
reorganizar a minha vida. Comecei a escrever o roteiro para um filme – pensando
que o meu texto seria tão bom que acabaria virando um filme – e decidi voltar
aos estudos, pois, na luta de emigrar acabei por abandonar a escola porque a
viagem estava “bem perto de acontecer”, já expliquei isso, mas pode ser que as
pessoas se tenham esquecido. Tinham-se passado mais 9 anos sem ir a escola para
estudar.
Decidi aceitar a oferta da União Bíblica de Angola (Scripture Union) e me tornei um funcionário dessa organização
onde tive acesso a alguns livros tais como “A cruz e o punhal” de David
Wilkerson, entre outros. Enquanto lia, começava a também a desenvolver um gosto
ímpar pela escrita. Aos poucos também, as pessoas ao meu redor começavam a
notar esta inclinação. Mesmo de forma desinformada, comecei a escrever folhetos
evangelísticos. Comecei a ler com uma avidez ainda maior.
Mais tarde participei de um
seminário para redactores organizado pelo departamento de comunicação da
Aliança Evangélica de Angola. Como sempre fui muito atento à língua portuguesa,
corrigindo as pessoas que se expressavam mal, tinha os olhos atentos ao sentido
das frases, tanto a nível artístico como a nível gramatical. O seminário
terminou e logo em seguida fui convidado a participar de um grupo de escritores
evangélicos que se uniam aos sábados para troca de experiências. Nesses
encontros partilhávamos ideias e corrigíamos os textos para folhetos uns dos
outros. Aos poucos ia sendo solicitado para ser o “editor” do grupo.
Alguns livros (muito bons)
foram publicados. Com a ajuda de Hans Udo Fuchs, o missionário brasileiro que
na altura estava numa organização das editoras brasileiras que ajudavam Angola
com literatura, os nossos esforços deram certo e conseguimos fazer com que um
dos livros de uma das nossas autoras fosse publicado. Foi um sucesso. Ela,
chamada Sónia Gomes, continuou a escrever, ao passo que eu, abandonei a escrita
para me dedicar totalmente aos estudos.
Com o meu afastamento o grupo
desfez-se. Acredito que por um lado o livro da Sónia foi um encorajamento para
todos, mas, por outro gerou uma certa ansiedade nos demais escritores. Quando
chegaria a nossa vez? Entretanto, a Sónia
Gomes continuou a escrever, publicou mais dois livros, entrou na União dos
Escritores Angolanos – uma organização bastante credível em Angola, mas que tem
certa conotação política, uma vez que os seus membros são quase todos membros do
partido no poder – e conseguiu publicar mais uns tantos livros.
Quando estava no fim da
faculdade voltei aos textos – uns 8 anos depois. Os meus estudos tinham
acontecido em condições dramáticas, pois faltava dinheiro para as propinas, para o transporte a até para o material didáctico. Aos
escrever o meu livro, pensava em encorajar os jovens a lutarem pelos
seus sonhos ainda que não tivessem dinheiro suficiente. Pela minha história acabei
achando que eles também poderiam dar-se bem na vida se tão-somente se apoiassem
em Deus e tivessem um plano o livro se chamava: Você também
pode ter sucesso – sete dicas para você viver a altura dos seus sonhos.
Novamente as dificuldades
seguiram o projecto. Alguns dos meus antigos mestres e colegas não leram o
manuscrito, o que me deixou desanimado, mas não me derrotou. Depois vieram as
dificuldades financeiras. E por fim as dificuldades na distribuição. Alguns dos
meus amigos não aceitaram ler o livro. Outros não aceitaram o preço que propus,
achavam que eu não tinha condições para escrever um livro sobre sucesso, e, o
preço que dei também era muito alto aos seus olhos. Não consegui fazer da distribuição
do livro um sucesso. Recebi sugestões para pagar por isso, mas a tentação não
me encantou muito, e mesmo que o fizesse, os meus recursos acabaram na chegada
do livro a Angola – pois havia sido produzido em Portugal e impresso no Brasil,
pela Imprensa da fé.
Embora o livro tenha
vendido todas as cópias em algum tempo, mais do que havia planeado, ele fez com que eu
conhecesse muitas pessoas que afinal escreviam mas que não sabiam como fazer
para que os seus livros chegassem a ser publicados. Alem disso, o meu livro
tornou-se um símbolo nacional – foi o primeiro livro de auto-ajuda escrito por
um autor angolano – ao qual se seguiram outros livros.
Em 2010 publiquei mais um livro,
desta vez tinha sido escrito por mim em autoria com uma jovem. Este livro que
retratava a correspondência entre um jovem em recuperação num centro de
reabilitação por uso de drogas e uma jovem vencedora do concurso de Miss
Luanda, foi mais conhecido, porque tinha muita publicidade.
Depois deste seguiram-se mais
dois livros. Os dois foram escritos com dois irmãos meus, um deles mestre de
dança na Itália e outro com um atleta olímpico que pratica voleibol de praia
em Angola. Voltamos a ganhar alguma notoriedade editorial, enquanto a nível de
distribuição ainda enfrentamos alguns problemas. Em 2013, abandonei a empresa
na qual trabalhava e, usando o selo que criei para a publicação dos meus livros
criamos uma empresa chamada Tchi Criativa. Nesta empresa queremos publicar
livros de autores nacionais e internacionais.
Temos um longo caminho pela
frente. Alguns livros que recebemos de fora já não oferecem respostas para os
desafios que enfrentamos em Angola, a edição e publicação de autores nacionais
vai contribuir para que haja uma comunidade evangélica mais forte, mais
consciente do seu papel e ainda, mais consciente da sua presença abençoadora
neste mundo, a começar por Angola. Todas estas portas, porém, vão se abrindo, aos poucos a partir daquele dia em que as portas que eu queria que se abrissem, infelizmente, se fecharam para mim.